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Belo Monte: "A Funai deveria tomar iniciativa e defender os direitos indígenas", afirma antropólogo

Belo Monte: "A Funai deveria tomar iniciativa e defender os direitos indígenas", afirma antropólogo - 03/05/2010

Local: São Paulo - SP
Fonte: Amazonia.org.br
Link: http://www.amazonia.org.br


Fabíola Munhoz

Em entrevista ao site Amazonia.org.br, o antropólogo, integrante da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), João Pacheco de Oliveira, explica porque a entidade é contra a forma como vem sendo conduzido, pelo governo federal, o projeto de construir a usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA).

Para o professor, o processo de autorização da obra tem se realizado com pressa excessiva e sem o devido diálogo com os povos indígenas, para a chegada a um consenso sobre a definição de medidas compensatórias aos impactos que o empreendimento trará a essas populações. Ele, em parte, responsabiliza a Fundação Nacional do Índio (Funai) por essa falta de consulta aos índios. Confira a conversa com o antropólogo.

Amazonia.org.br- Por que a ABA se preocupa com o projeto de Belo Monte?

João Pacheco de Oliveira- A ABA tem uma tradição de se posicionar com relação a projetos de lei ou ações que possam ser prejudiciais aos direitos indígenas. A associação faz isso há mais de 20 ou 30 anos, por meio de uma Comissão de Assuntos Indígenas. Nós temos feito manifestações à opinião pública, às autoridades, recomendando, no caso em que a gente percebe que os índios poderão ser prejudicados, algum rumo de ação.

Amazonia.org.br- Em que aspectos a obra traria riscos aos direitos indígenas?

Oliveira- Nós não temos propriamente um estudo mais circunstanciado, feito pela ABA, sobre essas questões. A associação também não chegou a organizar uma comissão para tratar especificamente o assunto. Mas, isso não impede que a gente ache que o projeto está sendo tocado com uma pressa inadequada e sem avaliações, que conviria existirem. A Constituição Federal fala sobre isso, é importante haver um ponto de vista indígena, uma negociação com os indígenas, um acordo do ponto de vista desses povos. E a gente tem visto ações, pela mídia, ou recebemos manifestações, como a do cacique Megaron, de profunda insatisfação com relação à obra.

Existem também antropólogos e ambientalistas próximos à questão que tem manifestado grandes preocupações sobre a repercussão disso. Eles acham que o projeto deveria ser fortemente revisto, em relação aos grupos atingidos, e em relação a se cumprir requisitos técnicos necessários. Acho que um empreendimento dessa monta só deve ser realizado desde que haja um consenso entre vários estudos científicos, entre várias análises, e que haja uma aceitação por parte dos atores sociais envolvidos diretamente, o que, a nosso ver, não está configurado.

Amazonia.org.br: Quando fala sobre a falta de negociação com os índios, o senhor se refere ao desrespeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)?

Oliveira- De fato, deve haver essa consulta. A convenção foi aceita pelo governo brasileiro e tem gerado normas de atuação da cooperação internacional, do Banco Mundial, ações da Funai, do Ministério do Meio Ambiente, têm sempre que possível respeitado esse dispositivo, do consenso informado, da consulta esclarecida. Esses são princípios básicos de uma administração pública contemporânea. Não é possível esquecer isso e começar a agir de um modo extremamente acelerado.

Amazonia.org.br- Durante a análise dos impactos de Belo Monte, faltaram estudos antropológicos na região que será atingida pela obra?

Oliveira- Acho que, em combinação com os estudos ambientais, seria recomendado. Se o governo realmente resolver adotar uma política mais adequada em relação a isso, estudos mais acurados poderiam ser feitos. O governo não deveria ver isso como o direito de reclamar, não é isso. O que está se buscando é uma medida de bom senso em relação à proteção dos direitos dos cidadãos da Amazônia e dos direitos constitucionais brasileiros. Não é uma questão de teimosia de grupos ecologistas, antropólogos ou índios. É uma questão do cumprimento das normas e de uma boa política. Essa é uma obra de grande envergadura, e não pode começar a ser feita sem que haja todos os estudos e sejam levantadas as várias possibilidades, de maneira que haja mitigação de qualquer efeito que possa ser levantado por essas ações. É correto que tais ações só sejam iniciadas quando todos os estudos necessários estiverem concluídos, prevendo indenizações, mitigações, resolvendo os direitos das pessoas atingidas, e não sem que isso esteja resolvido, como na situação atual.

Amazonia.org.br- Quais serão os impactos de Belo Monte à cultura dos indígenas, já que muitos terão atividades tradicionais, como a pesca e a navegação, prejudicadas pela barragem?

Oliveira- Naturalmente, um empreendimento dessa natureza deve ter pressão sobre a organização social, a cultura, os rituais, o modo de pensar dos índios. Exatamente por isso a gente acha que deve haver cautela, cuidado, para que não se dê uma ação deletéria, exclusiva, mas que possa até ser feita uma ação em eventual benefício ao próprio grupo atingido. Afinal, se o grupo vai abrir mão de determinados controles que ele exerce sobre o meio ambiente, não o fará certamente para ser prejudicado, mas sim, para receber coisas que ele considera como compensações, que o permitam não sofrer perdas culturais e sociais significativas.

Amazonia.org.br- Diante das atitudes recentes do governo Lula, pode-se dizer que ele não tem demonstrado preocupação com a conservação da riqueza cultural indígena?

Oliveira- Eu acho que é difícil avaliar o governo como um todo. Do ponto de vista sociológico, pensamos em grupos de atuação. No caso da política indigenista, acho que os canais do órgão oficial, da Funai, estão meio limitados, e por isso não fazem o que deveria ser o papel deles. O órgão deveria estar, nesse caso, mediando a situação, conversando com os índios, tentando produzir esses estudos, discutindo com a sociedade civil e com pesquisadores, gerando soluções. Mas, não vejo a Funai nessa posição de tomar iniciativas. Acho que ela está numa postura defensiva. E deveria ser o contrário. A Funai deveria tomar iniciativas, defender os direitos indígenas, realizar estudos, negociar com a sociedade civil e os índios soluções adequadas e de consenso. Mas, se a fundação não dispõe dessa credibilidade, ou dessa estrutura de legitimidade do ponto de vista dos índios, fica mais difícil para ela fazer essa ação. E tem havido manifestações de lideranças indígenas de várias partes do Brasil bastante críticas com relação à atuação da Funai.

Então, o momento exigiria bastante cautela. Se o governo não possui um bom negociador na área indigenista, é melhor ele de certa forma botar suas barbas de molho para não ter um prejuízo político de grande envergadura, que seja resultante de uma ação antipopular, que vai trazer danos à população, e pode ser extremamente politizada num ano de disputa eleitoral.

Amazonia.org.br- Essa postura da Funai pode ser reflexo de uma imposição das decisões do governo federal sobre o modo de agir do órgão, como se tem observado em relação ao Ibama?

Oliveira- Eu acho que há diferença entre os estudos que foram feitos pelos técnicos da Funai e a posição que foi adotada somente pelo órgão, que é de perfilhamento com a posição geral do governo. A função de quem exerce uma tarefa técnica na Funai não é a mesma de cargos políticos, diplomáticos. Ela exige alertar o governo para os riscos que estão sendo corridos, com relação aos impactos reais do projeto e também com relação à polarização da opinião pública sobre isso. Para ter havido tantas matérias na última semana sobre Belo Monte, seria bom o governo reavaliar se ele está mesmo avançando em termos de popularidade, ou simplesmente se desgastando numa questão que parece, para a opinião pública, como a luta entre Golias e Davi.

Amazonia.org.br- A mobilização alcançada pelos indígenas contra Belo Monte representa um marco do poder de organização desses povos na luta pelos seus direitos?

Oliveira- Eu acho que não é tanto assim. Nós passamos no ano passado uma questão extremamente importante, que foi Raposa Serra do Sol [terra indígena de Roraima], situação resolvida ao final, com a homologação do território e atuação firme e eficiente do governo, no sentido de assegurar os direitos indígenas. Essa relação foi mais paradigmática, em termos da relação entre os povos indígenas e o governo brasileiro, porque envolvia repensar todo o processo de demarcação de terras indígenas, a participação de organismos estaduais, do Congresso Nacional e da Justiça. De certa maneira, todas as terras indígenas, não só Raposa Serra do Sol, a partir dessa decisão do Supremo Tribunal Federal [determinando a demarcação de Raposa Serra do Sol em terras contínuas], estavam em discussão também.

(Fonte: http://www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=353592, acesso em 04.maio.2010).

Réplica à confissão de fraude de Veja

From: E Viveiros de Castro
Date: 4 May 2010 10:01:44 GMT-03:00
To: veja@abril.com. br
Subject: Réplica à confissão de fraude de Veja

Aos Editores da revista Veja:

Em resposta à mensagem que enviei à revista Veja no dia 01/05, denunciando a imputação fraudulenta de declarações que me é feita na matéria "A farra da antropologia oportunista" , o site Veja.com traz ontem uma resposta com o título "No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é". Ali, os responsáveis pela revista, ou pela resposta, ou, pelo jeito, por coisa nenhuma, reincidem na manipulação e na mentira; pior, confessam cinicamente que fabricaram a declaração a mim atribuída.

Em minha carta de protesto inicial, sublinhei dois pontos: "(1) que nunca tive qualquer espécie de contato com os responsáveis pela matéria; (2) que não pronunciei em qualquer ocasião, ou publiquei em qualquer veículo, reflexão tão grotesca, no conteúdo como na forma".

Veja contesta estes pontos com os seguintes argumentos:

(1) "Sua primeira afirmação não condiz com a verdade. No início de março, VEJA fez contato com Viveiros de Castro por intermédio da assessoria de imprensa do Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde ele trabalha. Por meio da assessoria, Viveiros de Castro recomendou a leitura de um artigo seu intitulado "No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é", que expressaria sua opinião de forma sistematizada e autorizou VEJA a usar o texto na reportagem de uma maneira sintética."

Respondo: é falso. A Assessoria de Imprensa do Museu Nacional telefonou-me, talvez no início de março (não acredito mais em nada do que a Veja afirma), perguntando se receberia repórteres da mal-conceituada revista, a propósito de uma matéria que estariam preparando sobre a situação dos índios no Brasil. Respondi que não pretendia sofrer qualquer espécie de contato com esses profissionais, visto que tenho a revista em baixíssima estima e péssima consideração. Esclareci à Assessoria do Museu que eu tinha diversos textos publicados sobre o assunto, cuja consulta e citação é, portanto, livre, e que assim os repórteres, com o perdão da expressão, que se virassem. Não "recomendei a leitura" de nada em particular; e mesmo que o tivesse feito, não poderia ter "autorizado Veja" a usar o texto, simplesmente porque um autor não tem tal poder sobre trabalhos seus já publicados. Quanto à curiosa noção de que eu autorizei a revista, em particular, a "usar de maneira sintética" esse texto, observo que, além de isso "não condizer com a verdade", certamente não é o caso que esse poder de síntese de que a Veja se acha imbuída inclua a atribuição de sentenças que não só se encontram no texto em questão, como são, ao contrário e justamente, contraditas cabalmente por ele. A matéria de Veja cita, entre aspas, duas frases que formam um argumento único, o qual jamais foi enunciado por mim. Cito, para memória, a atribuição imaginária: "Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente cultural original" . Com isso, a revista induz maliciosamente o leitor a pensar que (1) a declaração foi dada de viva voz aos repórteres; (2) ela reproduz literalmente algo que disse. Duas grosseiras inverdades.

Veja contesta o segundo ponto com o argumento:

(2) "Também não condiz com a verdade a afirmação feita por Viveiros de Castro no item (2) de sua carta. A frase publicada por VEJA espelha opinião escrita mais de uma vez em seu texto ("Não é qualquer um; e não basta achar ou dizer; só é índio, como eu disse, quem se garante" e "pode-se dizer que ser índio é como aquilo que Lacan dizia sobre ser louco: não o é quem quer. Nem quem simplesmente o diz. Pois só é índio quem se garante")." Ato contínuo, a revista dá o texto na íntegra, repetindo que eu a autorizei a usar o texto "da forma que bem entendesse".

(Veja o link para meu texto: http://pib.socioamb iental.org/ files/file/ PIB_instituciona l/No_Brasil_ todo_mundo_ %C3%A9_%C3% ADndio.pdf).

Pela ordem. Em primeiro lugar, essa resposta da revista fez desaparecer, como num passe de mágica, a frase propriamente afirmativa de minha suposta declaração, a saber, a segunda (Só é índio quem nasce, cresce e vive em um ambiente cultural original"), visto que a primeira (Não basta dizer que é índio etc.) permanece uma mera obviedade, se não for completada por um raciocínio substantivo. Ora, o raciocínio substantivo exposto em meu texto está nas antípodas daquele que Veja falsamente me atribui. A afirmação de Veja de que eu a autorizara a "usar" o texto da forma que ela "bem entendesse" parece assim significar, para os responsáveis (ou não) pela revista, que ela poderia fabricar declarações absurdas e depois dizer que "sintetizavam" o texto. Esse arrogamente "da forma que bem entendesse" não pode incluir um fazer-se de desentendido da parte da Veja.

Reitero que a revista fabricou descaradamente a declaração "Só é indio quem nasce, cresce e vive em um ambiente cultural original". Se o leitor tiver o trabalho de ler na íntegra a entrevista reproduzida em Veja.com, verá que eu digo exatamente o contrário, a saber, que é impossível de um ponto de vista antropológico (ou qualquer outro) determinar condições necessárias para alguém (uma pessoa ou uma coletivdade) "ser índio". A frase falsa de Veja põe em minha boca precisamente uma condição necessária, e, ademais, absurda. Em meu texto sustento, ao contrário e positivamente, que é perfeitamente possível especificar diversas condições suficientes para se assumir uma identidade indígena. Talvez os responsáveis pela matéria não conheçam a diferença entre condições necessárias e condições suficientes. Que voltem aos bancos da escola.

A afirmação "só é índio quem nasce, cresce e vive em um ambiente cultural original" é, repito, grotesca. Nenhum antropólogo que se respeite a pronunciaria. Primeiro, porque ela enuncia uma condição impossível (o contrário de uma condição necessária, portanto!) no mundo humano atual; impossível, na verdade, desde que o mundo é mundo. Não existem "ambientes culturais originais"; as culturas estão constantemente em transformação interna e em comunicação externa, e os dois processos são, via de regra, intimamente correlacionados. Não existe instrumento científico capaz de detectar quando uma cultura deixa de ser "original", nem quando um povo deixa de ser indígena. (E quando será que uma cultura começa a ser original? E quando é que um povo começa a ser indígena?). Ninguém vive no ambiente cultural onde nasceu. Em segundo lugar, o "ambiente cultural original" dos índios, admitindo-se que tal entidade exista, foi destruido meticulosamente durante cinco séculos, por epidemias, massacres, escravização, catequese e destruição ambiental. A seguirmos essa linha de raciocínio, não haveria mais índios no Brasil. Talvez seja isso que Veja queria dizer. Em terceiro lugar, a revista parte do pressuposto inteiramente injustificado de que "ser índio" é algo que remete ao passado; algo que só se pode ou continuar (a duras penas) a ser, ou deixar de ser. A idéia de que uma coletividade possa voltar a ser índia é propriamente impensável pelos autores da matéria e seus mentores intelectuais. Mas como eu lembro em minha entrevista original deturpada por Veja, os bárbaros europeus da Idade Média voltaram a ser romanos e gregos ali pelo século XIV -- só que isso se chamou "Renascimento" e não "farra de antropólogos oportunistas" . Como diz Marshall Sahlins, o antropólogo de onde tirei a analogia, alguns povos têm toda a sorte do mundo.

E o Brasil, será que temos toda a sorte do mundo? Será que o Brasil algum dia vai se tornar mesmo um grande Estados Unidos, como quer a Veja ? Será que teremos de viver em um ambiente cultural que não é aquele onde nascemos e crescemos? (Eu cresci durante a ditadura; Deus me livre desse ambiente cultural). Será que vamos deixar de ser brasileiros? Aliás, qual era mesmo nosso ambiente cultural original?

Grato mais uma vez pela atenção

Eduardo Viveiros de Castro
antropólogo - UFRJ

"Os Espertalhões e a Veja", Kelly Oliveira

-----Mensagem original-----
De: "kelly"
Para: nepe@yahoogrupos.com.br
Data: Segunda, 03 de Maio de 2010 04:08
Assunto: [nepe] Os Espertalhões e a Veja - A Farra da Antropologia Oportunista


Os Espertalhões e a Veja

Acabei de ler o artigo da veja "A Farra da Antropologia Oportunista" e fiquei estarrecida com a forma bem articulada e ordenada de encobrir verdades, explicitar
meias palavras e escancarar depoimentos – escolhidos a dedo – de supostas autoridades discursivas.

Como antropóloga e jornalista percebo, como muitos de vocês, o caráter declaradamente parcial da linha editorial da revista, que de fato não pretende se
apresentar
como um meio de comunicação que ponha em discussão os dois ou mais lados de uma questão. Sua pretensão é a da formação de opinião a partir de um
posicionamento parcial,
enfático e carregado de uma expressividade de "dona da verdade", baseada na longa data de existência e, para grande parte do público que a lê, na suposta
seriedade
de seus artigos – já que não podemos chamar de matéria jornalística escritos tão escancaradamente opinativos como os deste periódico.

Até aí nada de errado, já que a revista se declara abertamente opinativa, não escondendo portanto sua parcialidade. Escrevo, no entanto, a fim de percebermos
a forma
como a revista pega cada uma das informações e cuidadosamente as seleciona para ir além da opinião e distorcer, omitir e comprometer o posicionamento ético
que supostamente
acalenta. Começando com as autoridades discursivas citadas – Mércio Pereira Gomes e Eduardo Viveiros de Castro – que demonstram um olhar não só reconhecidamente
parcial com relação ao processo de fortalecimento de identidades étnicas no país, como tiveram suas frases escolhidas a dedo para corroborar com uma perspectiva
de "originalidade cultural" e de deslegitimação do processo de regularização de territórios indígenas – se é que foram mesmo frases deles, pois o
Viveiros de Castro
já desmentiu a presença de qualquer fala sua no artigo.

Por outro lado, o artigo explicita meias verdades, ao citar no box "índio bom é índio pobre", o caso de um grupo que, por "culpa" da Funai, teria perdido a
oportunidade
de vender seu território, em troca de 1 milhão de reais para cada família. Ora, sabemos que, por lei as terras indígenas são propriedade da União e de
posse coletiva
dos Guarani, sendo inalienáveis, o que evidentemente – mas não tão evidentemente no artigo – impossibilita qualquer tipo de negociação. Por outro lado,
ficou explícita
a perspectiva preconceituosa como foi caracterizada a liderança do grupo, que segundo a revista é "casada com um caminhoneiro (branco), tem carro, tv, computador,
faz compras no supermercado" – fiquei pensando se ela seria mais poupada se fizesse compras em alguma vendinha local.

São tantas as meias verdades, que parece difícil numerar todas. Temos, por exemplo, o momento em que são citados os Anacé (CE), como grupo que faz macumba
por achar
que seria indígena, o que o artigo trata de declarar como um erro, já que se trataria de um "culto africano". Omitindo, de forma perspicaz, o fato de que os
grupos
indígenas ao longo dos anos não viveram envoltos em uma bolha cultural, mas estabeleceram relações – de forma enfática naquela região – com populações
de origem
africana, do que derivaram formas culturais ampliadas, englobando a realidade religiosa dessas pessoas.

Curiosamente, ao citar os laudos antropológicos, segundo a Veja elaborados "sem nenhum rigor científico e com claro teor ideológico de uma esquerda que ainda
insiste
em extinguir o capitalismo, imobilizando terras para a produção", se depõe de forma criminosa – que seria melhor ressaltada através de um processo movido
pela ABA
– contra o trabalho de profissionais que têm no rigor científico sua base de ação, desmerecendo processos reflexivos multidisciplinares, que vão além
da antropologia,
englobando saberes não só das ciências sociais, como também históricos, geográficos, ambientais e jurídicos, para citar apenas algumas das disciplinas
envolvidas
na feição do documento.

Os ataques foram bem alimentados com informações cuidadosamente embaralhadas – como a de englobar em um mesmo percentual (77,6%) as terras indígenas, quilombolas,
assentamentos e reservas florestais, como de áreas improdutivas (e o montante sobe para 90,6% quando incluem cidades e infraestrutura). Fiquei me perguntando o
que,
afinal, seria o que o artigo chama de "território para produção e desenvolvimento". Porque produtivas as terras indígenas, quilombolas e os assentamentos
também
são, como temos centenas de exemplos. E até mesmo em áreas de preservação, onde está crescendo a consciência de um manejo sustentável para as famílias
que tiram
seu sustento das florestas. Afinal, para quem se geraria renda com o que foi definido como "agronegócio" pela veja? A grandes conglomerados empresariais? A mega
empresários que pouco ou nada trazem em troca para o país, além de seus nomes divulgados na lista dos mais ricos do mundo (e o que afinal isso contribui para
a vida
dos brasileiros???)

A Veja parte de uma imoralidade ética e ofensiva não só às comunidades tradicionais, antropólogos e indigenistas como também ao próprio jornalismo.
Um olhar preconceituoso,
tanto do que seria as comunidades tradicionais e assentados rurais quanto da perspectiva de desenvolvimento, que pelo que pude ver se refere a uma visão elitista
e antiquada, destinada a negócios que gerem renda para a pequena parcela de privilegiados economicamente. Desmerecendo inclusive a crescente onda de valorização
pela comunidade internacional do trabalho familiar e do comércio responsável, que incentiva a produção local e o manejo tradicional de recursos naturais.

Beira a vergonha a forma escancarada como se ataca os personagens apresentados na matéria, e como se transforma uma reivindicação que, evidentemente, tem também
seu caráter político, em uma estratégia de "espertalhões", para se apossarem de terras que poderiam estar nas mãos produtivas do "agronegócio". Uma jogada
de mestre
desta revista, que transforma a reivindicação de grupos tradicionais em um simples jogo por dinheiro, e que coloca os "cidadãos brasileiros" como vítimas
de índios,
quilombolas e assentados – que, pelo visto, não são brasileiros, e muito menos cidadãos.

Kelly Oliveira

Resposta de Mércio à Revista Veja

De: marcela purini Belem [mailto:mpurini@hotmail.com]
Enviada em: segunda-feira, 3 de maio de 2010 17:02
Para: ant-bra@lists.uchicago.edu
Assunto: [Ant-Bra] Resposta a Veja do antropólogo Mércio Pereira Gomes ex-presidente da Funai

Do Blog do Mércio

Resposta à matéria da VEJA “A farra da antropologia oportunista”

Mais uma vez a revista VEJA traz em suas páginas matéria cheia de injúrias aos povos indígenas brasileiros.
Não pode passar despercebido ao mais desavisado e ingênuo leitor dessa revista o ranço, o azedume de preconceitos e vícios jornalísticos apresentados sobre a questão indígena brasileira. Porém a factualidade do texto também está comprometida por desvirtuamentos de pesquisa, compreensão e análise que certamente intencionam provocar uma impressão extremamente negativa da questão indígena em nosso país.
Os autores da matéria “A farra da antropologia oportunista”, ao que tudo indica jornalistas jejunos no trato de tais assuntos, parecem perseguir uma linha editorial ou um estilo jornalístico em que a busca de objetividade possível é relegada ao interesse ideológico de denegrir as conquistas dos segmentos mais oprimidos do povo brasileiro e demonstrar o seu favorecimento aos poderosos da nação. Primam por um estilo sardônico, próprio de jornalistas que fazem de seu ofício a defesa inquestionável do status quo social e econômico brasileiro, aludem a supostos fatos a partir de evidências descontextualizadas e apresentam citações sem a mínima preocupação com comprovação.
Falta-lhes sobretudo compreensão histórica da questão indígena brasileira, do papel da antropologia e da condição contemporânea da ascensão dos povos indígenas no Brasil e no mundo. Empatia às causas populares e gestos positivos em relação à ascensão das camadas sociais mais oprimidas da nação são atitudes ausentes nesse tipo de jornalismo.
Ao contrário, estão do lado dos que consideram a nação um quintal a ser usado (e abusado) ao seu bel prazer. Um repertório acanhado, porém virulento, de asserções deslocadas do processo histórico tenciona incutir no leitor uma visão de que os povos indígenas – e também os descendentes de quilombolas – estão aí para surrupiar as riquezas da nação dos destemidos fazendeiros, madeireiros, mineradores e empreiteiros da nação. A continuar esse processo não sobrarão terras nem riquezas naturais para a continuada exploração econômica da nação!
Os antropólogos estariam a serviço de uma espécie de subversão da realidade empírica, afeitos à criação imaginativa de identidades étnicas e dispostos a reverter o processo histórico nacional. Nem os mais afoitos de nós sonham com tamanho poder!
Já os índios e quilombolas estão em marcha guerreira para varrer do país aqueles que dariam sustento e sentido à nação.
É demais.
Apresento aqui o meu repúdio a esse tipo de jornalismo.
Denego-lhe o falso direito jornalístico de atribuir a mim uma frase impronunciada e um sentido desvirtuante daquilo que penso sobre a questão indígena brasileira.
Portanto, conclamo os editores da VEJA a rever sua visão miópica e estigmatizada do processo histórico brasileiro. Fariam bem ao seus leitores se se concentrassem na busca de objetividade jornalística e numa compreensão humanista, científica e hiperdialética da história do nosso país.
Atenciosamente,
Mércio Pereira Gomes, antropólogo, professor da Universidade Federal Fluminense e ex-presidente da Funai