6.5.10

Desconstruindo a matéria da Veja

Desconstruindo a matéria da Veja
Enviado por: "Marcio Santos" marciomsantos@gmail.com marciomsant
Qua, 5 de Mai de 2010 12:49 am


Desconstruindo ainda mais a famigerada matéria da Veja...

http://faire-savoir.info/2010/05/04/a-farra-do-jornalismo-oportunista/

R$1,99
A farra do jornalismo
oportunista?
maio
4, 2010

A revista Veja dessa semana publicou uma matéria intitulada “*A farra da
antropologia oportunista*”. Aparentemente os jornalistas Leonardo Coutinho,
Júlia de Medeiros e Igor Paulin desejavam denunciar o que seria uma espécie
de “esquema” entre ONGs internacionais, antropólogos e o Governo Federal
para extinguir a propriedade privada de imóveis rurais no Brasil através da
demarcação de terras indígenas e terras de quilombo, além da criação de
unidades de conservação.

Comento a matéria aqui sem entrar no mérito de outras questões mais
profundas, abordando dois aspectos da reportagem que são absolutamente
hediondos para os padrões de qualquer tipo de jornalismo.
A falácia

Os repórteres abrem a matéria com a seguinte afirmação:

*Áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e supostos antigos
quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do Brasil.*

Qualquer alma com dois dedos de bom senso questionaria essa afirmação. Uma
vez que as terras indígenas correspondem a 13% da área do país, sobretudo na
região amazônica. Coloco aqui dados do Instituto Socioambiental acerca dessa
extensão:

O Brasil tem uma extensão territorial de 851.196.500 hectares, ou seja,
8.511.965 km2. As terras indígenas (TIs) somam 653 áreas, ocupando uma
extensão total de 110.500.556 hectares ( 1.105.006 km2). *Assim, 13% das
terras do país são reservados aos povos
indígenas.*

*A maior parte das TIs concentra-se na Amazônia Legal: são 409 áreas,
108.720.018 hectares, representando 21.67% do território amazônico e 98.61%
da extensão de todas as TIs do país. O restante, 1.39%, espalha-se pelas
regiões Nordeste, Sudeste, Sul e estado do Mato Grosso do
Sul.*

Agora vejamos um mapa onde essas terras estão representadas:



Digamos então, que o restante dessa porcentagem absurda levantada pelos
jornalistas, agora 64,6%, estivesse relacionado às terras de quilombo ou às
unidades de conservação. Ainda assim os números parecem não bater, já que
segundo o “Atlas da Questão Agrária
Brasileira”,
organizado pela UNESP, as áreas das unidades de conservação federais e
estaduais em 2007

totalizavam *99,7 milhões de hectares*, sendo *98 milhões referentes às
unidades de conservação em ambientes terrestres.* Dessas unidades, 310 (41,5
milhões de ha) são de proteção integral e 286 (58,2 milhões de ha) de uso
sustentável. Entre 1997 e 2007 foram criadas 251 unidades de conservação e
acrescidos 51,35 milhões de hectares de unidades em ambientes terrestres. A
distribuição territorial das unidades de conservação é desigual e a maior
parte está no bioma amazônico, que concentra 74,2 milhões de hectares –
75,7% do total.

Lembrando “o Brasil tem uma extensão territorial de 851.196.500 hectares”,
os 98 milhões de hectares, já que estamos excluindo as unidades de
conservação oceânicas, corresponderiam a aproximadamente *11,71% *do
território nacional. Boa parte dessas terras não é “improdutiva”, mas são as
chamadas “áreas de uso sustentável” que seguem regras especiais para a
exploração, como demonstra o mapa abaixo.



Então, temos 24,7 1% do Brasil dedicado a terras indígenas e unidades de
conservação, correto? Não necessariamente. Se sobrepusermos os dois mapas é
possível perceber que há sobreposição de áreas de unidades de conservação e
terras indígenas em vários pontos do país, o que diminuiria esse percentual.
Mas, vamos supor que há 24% do território nacional, sobretudo na Amazônia
Legal, dedicado a unidades de conservação e terras indígenas.



Para chegar então aos 53,6% restantes (77,6% – 24%) seria necessário que as
terras de quilombo abarcassem estrondosos 459 milhões de hectares… o que não
é verdade. Segundo a comissão Pró-Índio de São Paulo

*Em setembro de 2008, os territórios quilombolas titulados somavam 1.171.213
hectares. Até essa data, o Pará continuava como o estado com a maior
extensão titulada: 628.674,7 hectares, o que corresponde a cerca de 54% do
total já regularizado.
*

[Para os mais interessados, aqui há uma
tabelaonde estão
os nomes, localização, e área de todas as comunidades.]

Logo, temos 1.171.213 hectares em terras de quilombo tituladas, o que
corresponde a, vejam só, 0,13% do território nacional. E as maiores terras
também estão na área da Amazônia Legal – novamente desconsiderando
sobreposições com unidades de conservação.

*Com base nesses dados, a porcentagem de 77,6% alegada na reportagem da
revista Veja não se sustenta sob qualquer argumento.* Além disso, a matéria
dá a entender que basta requerer a terra para se ter acesso a ela, ou mesmo
que o governo em exercício estaria sendo uma espécie de facilitador do
processo. Isso não se sustenta no caso das terras de
quilomboe
nem das terras indígenas, uma vez que o governo em exercício demarcou
e
homologou *menos terras (em extensão e quantidade) *do que o governo
anterior!

A matemática esotérica dessa reportagem parece estar baseada numa alegação
da Senadora Kátia
Abreu,
de que “90% do território brasileiro estaria congelado e inacessível ao
‘progresso’, como terras indígenas, quilombos, parques, cidades e
infra-estrutura”.Ela
disse ter encomendado uma pesquisa junto à Embrapa que provaria a
veracidade dessa afirmação… espero que, diferente da Senadora, os
pesquisadores em questão saibam soma, subtração e porcentagem.
A fraude

A reportagem é escrita como se fosse um conto, uma peça de ficção, parte de
um panfleto, não havendo fonte citada para qualquer uma das informações
presentes. Também parece-me estranho que uma reportagem com uma denúncia tão
severa, que basicamente implica o fim da propriedade privada de imóveis
rurais no Brasil, não conte com qualquer tipo de mobilização contrária por
parte de geógrafos, agrônomos, professores ou políticos. Não haveriam
centenas de pessoas contra tamanha mudança na questão fundiária brasileira?
Essas pessoas não dariam sua opinião à Veja? Essa ausência de opiniões
contrárias parece justificada pela suposição da reportagem de que a
demarcação de terras indígenas e terras de quilombo seria parte de um
“esquema” do qual a população em geral e até setores do Estado não saberiam
– o que é absolutamente inverossímil.

A reportagem traz, no entanto, duas supostas afirmações de antropólogos
conhecidos no Brasil. Uma seria de Eduardo Viveiros de Castro, professor do
Museu Nacional, e outra de Mércio Pereira Gomes, ex-presidente da FUNAI e
professor da Universidade Federal Fluminense. *Ambos se manifestaram dizendo
que não foram entrevistados pela revista, e que esta distorceu suas
palavras.*

Reproduzo as frases aqui:

- Frase atribuída a Mércio Gomes

“*Diante desse quadro, é preciso dar um basta imediato nos processos de
demarcação*“, como já advertiu há quatro anos o antropólogo Mércio Pereira
Gomes, ex-presidente da Funai e professor da Universidade Federal
Fluminense.

- Resposta de Mércio Gomes

Denego-lhe o falso direito jornalístico de atribuir a mim uma frase
impronunciada e um sentido desvirtuante daquilo que penso sobre a questão
indígena brasileira.

- Frase atribuída a Viveiros de Castro

Casos assim escandalizam até estudiosos benevolentes, que aceitam a tese dos
“índios ressurgidos”. “*Não basta dizer que é índio para se transformar em
um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura
indígena original*“, diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu
Nacional, no Rio de Janeiro.

- Resposta de Eduardo Viveiros de Castro

Na matéria “A farra da antropologia oportunista” (Veja ano 43 nº 18, de
05/05/2010), seus autores colocam em minha boca a seguinte afirmação: “Não
basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem
nasce, cresce e vive num ambiente cultural original*”. Gostaria de saber
quando e a quem eu disse isso, uma vez que (1) nunca tive qualquer espécie
de contato com os responsáveis pela matéria; (2) não pronunciei em qualquer
ocasião, ou publiquei em qualquer veículo, reflexão tão grotesca, no
conteúdo como na forma.* Na verdade, a frase a mim mentirosamente atribuída
contradiz o espírito de todas declarações que já tive ocasião de fazer sobre
o tema. Assim sendo, cabe perguntar o que mais existiria de “montado” ou de
simplesmente inventado na matéria. A qual, se me permitem a opinião, achei
repugnante.


A Veja respondeu no dia 03/05/2010 afirmando

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro enviou a VEJA uma carta - divulgada
amplamente na internet - sobre a reportagem *“A farra antropológica
oportunista” *[sic], publicada nesta edição da revista. Na carta, Viveiros
de Castro diz: “(1) nunca tive qualquer espécie de contato com os
responsáveis pela matéria; (2) não pronunciei em qualquer ocasião, ou
publiquei em qualquer veículo, reflexão tão grotesca, no conteúdo como na
forma”.

Sua primeira afirmação não condiz com a verdade. No início de março, VEJA
fez contato com Viveiros de Castro por intermédio da assessoria de imprensa
do Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde ele trabalha. Por meio da
assessoria, Viveiros de Castro recomendou a leitura de um artigo seu
intitulado “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”, que
expressaria sua opinião de forma sistematizada e autorizou VEJA a usar o
texto na reportagem de uma maneira sintética.

Também não condiz com a verdade a afirmação feita por Viveiros de Castro no
item (2) de sua carta. *A frase publicada por VEJA espelha opinião escrita
mais de uma vez em seu texto* (“Não é qualquer um; e não basta achar ou
dizer; só é índio, como eu disse, quem se garante” e “pode-se dizer que ser
índio é como aquilo que Lacan dizia sobre ser louco: não o é quem quer. Nem
quem simplesmente o diz. Pois só é índio quem se garante”).

O antropólogo Viveiros de Castro pode não corroborar integralmente o
conteúdo da reportagem, mas concorda, sim, como está demonstrada em sua
produção intelectual, que a autodeclaração não é critério suficiente para
que uma pessoa seja considerada indígena.

O texto em questão se encontra disponível
aquie
foi integralmente
reproduzido pela revista Veja com algumas partes negritadas que supostamente
corroborariam que o ponto de vista do pesquisador era condizente com o da
publicação.
Não entrando no mérito da interpretação do texto, é possível afirmar que
houve, no mínimo, má fé por parte do trio de jornalistas responsáveis pela
reportagem. *Não sou jornalista e não sei nada acerca da política de ética
da revista Veja, mas aspas são aspas! Se você não entrevistou alguém ou não
está fazendo uma citação ipsis litteris de um conteúdo elas não valem. Não
adianta dizer que a frase “espelha” a opinião do professor (ainda que ela
assim o fizesse), isso não torna a suposta citação menos fraudulenta.*

O professor Viveiros de Castro respondeu
novamente
:

Aos Editores da revista Veja:

Em resposta à mensagem que enviei à revista Veja no dia 01/05, denunciando a
imputação fraudulenta de declarações que me é feita na matéria “A farra da
antropologia oportunista”, o site Veja.com traz ontem uma resposta com o
título “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. Ali, os
responsáveis pela revista, ou pela resposta, ou, pelo jeito, por coisa
nenhuma, reincidem na manipulação e na mentira; pior, confessam cinicamente
que fabricaram a declaração a mim atribuída.

Em minha carta de protesto inicial, sublinhei dois pontos: “(1) que nunca
tive qualquer espécie de contato com os responsáveis pela matéria; (2) que
não pronunciei em qualquer ocasião, ou publiquei em qualquer veículo,
reflexão tão grotesca, no conteúdo como na forma”.

Veja contesta estes pontos com os seguintes argumentos:

(1) “Sua primeira afirmação não condiz com a verdade. No início de março,
VEJA fez contato com Viveiros de Castro por intermédio da assessoria de
imprensa do Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde ele trabalha. Por meio da
assessoria, Viveiros de Castro recomendou a leitura de um artigo seu
intitulado “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”, que
expressaria sua opinião de forma sistematizada e autorizou VEJA a usar o
texto na reportagem de uma maneira sintética.”

Respondo: é falso. A Assessoria de Imprensa do Museu Nacional telefonou-me,
talvez no início de março (não acredito mais em nada do que a Veja afirma),
perguntando se receberia repórteres da mal-conceituada revista, a propósito
de uma matéria que estariam preparando sobre a situação dos índios no
Brasil. Respondi que não pretendia sofrer qualquer espécie de contato com
esses profissionais, visto que tenho a revista em baixíssima estima e
péssima consideração. Esclareci à Assessoria do Museu que eu tinha diversos
textos publicados sobre o assunto, cuja consulta e citação é, portanto,
livre, e que assim os repórteres, com o perdão da expressão, que se
virassem. Não “recomendei a leitura” de nada em particular; e mesmo que o
tivesse feito, não poderia ter “autorizado Veja” a usar o texto,
simplesmente porque um autor não tem tal poder sobre trabalhos seus já
publicados. Quanto à curiosa noção de que eu autorizei a revista, em
particular, a “usar de maneira sintética” esse texto, observo que, além de
isso “não condizer com a verdade”, certamente não é o caso que esse poder de
síntese de que a Veja se acha imbuída inclua a atribuição de sentenças que
não só se encontram no texto em questão, como são, ao contrário e
justamente, contraditas cabalmente por ele. A matéria de Veja cita, entre
aspas, duas frases que formam um argumento único, o qual jamais foi
enunciado por mim. Cito, para memória, a atribuição imaginária: “Não basta
dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce,
cresce e vive num ambiente cultural original” . Com isso, a revista induz
maliciosamente o leitor a pensar que (1) a declaração foi dada de viva voz
aos repórteres; (2) ela reproduz literalmente algo que disse. Duas
grosseiras inverdades.

Veja contesta o segundo ponto com o argumento:

(2) “Também não condiz com a verdade a afirmação feita por Viveiros de
Castro no item (2) de sua carta. A frase publicada por VEJA espelha opinião
escrita mais de uma vez em seu texto (“Não é qualquer um; e não basta achar
ou dizer; só é índio, como eu disse, quem se garante” e “pode-se dizer que
ser índio é como aquilo que Lacan dizia sobre ser louco: não o é quem quer.
Nem quem simplesmente o diz. Pois só é índio quem se garante”).” Ato
contínuo, a revista dá o texto na íntegra, repetindo que eu a autorizei a
usar o texto “da forma que bem entendesse”.

(Veja o link para meu texto:
http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf
).

Pela ordem. Em primeiro lugar, essa resposta da revista fez desaparecer,
como num passe de mágica, a frase propriamente afirmativa de minha suposta
declaração, a saber, a segunda (Só é índio quem nasce, cresce e vive em um
ambiente cultural original”), visto que a primeira (Não basta dizer que é
índio etc.) permanece uma mera obviedade, se não for completada por um
raciocínio substantivo. Ora, o raciocínio substantivo exposto em meu texto
está nas antípodas daquele que Veja falsamente me atribui. *A afirmação de
Veja de que eu a autorizara a “usar” o texto da forma que ela “bem
entendesse” parece assim significar, para os responsáveis (ou não) pela
revista, que ela poderia fabricar declarações absurdas e depois dizer que
“sintetizavam” o texto. Esse arrogamente “da forma que bem entendesse” não
pode incluir um fazer-se de desentendido da parte da Veja.*

Reitero que a revista fabricou descaradamente a declaração “Só é indio quem
nasce, cresce e vive em um ambiente cultural original”. Se o leitor tiver o
trabalho de ler na íntegra a entrevista reproduzida em Veja.com, verá que eu
digo exatamente o contrário, a saber, que é impossível de um ponto de vista
antropológico (ou qualquer outro) determinar condições necessárias para
alguém (uma pessoa ou uma coletividade) “ser índio”. A frase falsa de Veja
põe em minha boca precisamente uma condição necessária, e, ademais, absurda.
Em meu texto sustento, ao contrário e positivamente, que é perfeitamente
possível especificar diversas condições suficientes para se assumir uma
identidade indígena. Talvez os responsáveis pela matéria não conheçam a
diferença entre condições necessárias e condições suficientes. Que voltem
aos bancos da escola.

A afirmação “só é índio quem nasce, cresce e vive em um ambiente cultural
original” é, repito, grotesca. Nenhum antropólogo que se respeite a
pronunciaria. Primeiro, porque ela enuncia uma condição impossível (o
contrário de uma condição necessária, portanto!) no mundo humano atual;
impossível, na verdade, desde que o mundo é mundo. Não existem “ambientes
culturais originais”; as culturas estão constantemente em transformação
interna e em comunicação externa, e os dois processos são, via de regra,
intimamente correlacionados. Não existe instrumento científico capaz de
detectar quando uma cultura deixa de ser “original”, nem quando um povo
deixa de ser indígena. (E quando será que uma cultura começa a ser original?
E quando é que um povo começa a ser indígena?). Ninguém vive no ambiente
cultural onde nasceu. Em segundo lugar, o “ambiente cultural original” dos
índios, admitindo-se que tal entidade exista, foi destruído meticulosamente
durante cinco séculos, por epidemias, massacres, escravização, catequese e
destruição ambiental. A seguirmos essa linha de raciocínio, não haveria mais
índios no Brasil. Talvez seja isso que Veja queria dizer. Em terceiro lugar,
a revista parte do pressuposto inteiramente injustificado de que “ser índio”
é algo que remete ao passado; algo que só se pode ou continuar (a duras
penas) a ser, ou deixar de ser. A idéia de que uma coletividade possa voltar
a ser índia é propriamente impensável pelos autores da matéria e seus
mentores intelectuais. Mas como eu lembro em minha entrevista original
deturpada por Veja, os bárbaros europeus da Idade Média voltaram a ser
romanos e gregos ali pelo século XIV — só que isso se chamou “Renascimento”
e não “farra de antropólogos oportunistas”. Como diz Marshall Sahlins, o
antropólogo de onde tirei a analogia, alguns povos têm toda a sorte do
mundo.

E o Brasil, será que temos toda a sorte do mundo? Será que o Brasil algum
dia vai se tornar mesmo um grande Estados Unidos, como quer a Veja ? Será
que teremos de viver em um ambiente cultural que não é aquele onde nascemos
e crescemos? (Eu cresci durante a ditadura; Deus me livre desse ambiente
cultural). Será que vamos deixar de ser brasileiros? Aliás, qual era mesmo
nosso ambiente cultural original?



Além disso, a reportagem dá a entender que a elaboração de relatórios
técnicos de delimitação e identificação seriam “lucrativos” para os
antropólogos. Prezados, as contas são abertas, podem verificar a modesta
quantia que é paga aos profissionais e depois se informem sobre o montante
absurdo de trabalho que é uma empreitada dessas.

Pior, faz parecer que os morosos processos de demarcação e homologação de
terras, com centenas de entraves burocráticos e judiciários seria algo quase
instantâneo, bastando que a comunidade que pleiteia o território se
“autodeclare” qualquer coisa. Os processos de homologação ou titulação
dessas terras são justamente isso: processos. São passíveis de
contraditório, anulação e etc. Em tempo: quem tem a palavra final acerca
da titulação/homologação de terras é o judiciário, não os antropólogos. O
trabalho dos antropólogos é descrever como o grupo se relaciona com a terra
que pleiteia e criar uma peça técnica onde reúne informações que vão desde
redes de parentesco até dados sobre produção agrícola e aspectos religiosos.
Esses dados compõe um documento maior, que inclui o levantamento das cadeias
dominiais das terras pleiteadas e sua situação fundiária – donde se pode
conhecer muito sobre a história da propriedade rural no Brasil…

Enfim, a mentira tem perna curta.

*PS:* os dados que apresentei acerca da extensão das terras de quilombo e
unidades de conservação não são desse ano. Usei deles porque não creio que
houve qualquer mudança significativa no total dessas áreas. De qualquer
forma, a presidência não decretou metade do Brasil em terras de quilombo e
UCs de 2007 para cá, logo os dados apresentados na Veja continuam inválidos.
Posted by Barba
Filed in antropologia
Tags: A farra da antropologia
oportunista,
antropologia , Eduardo
Viveiros de Castro,
imprensa marrom , Mércio
Gomes ,
respostas,
revista veja , terras de
quilombo , terras
indígenas

Nota da Comissão de Assuntos Indígenas (CAI/ABA)

De: gtquilombos@googlegroups.com [gtquilombos@googlegroups.com] em Nome de José Augusto Laranjeiras Sampaio [gugasampaio56@gmail.com]
Enviado: quarta-feira, 5 de maio de 2010 9:44
Para:
Cc:
Assunto: [GT Quilombos:3495] En: NOTA DA COMISSÃO DE ASSUNTOS INDÍGENAS DA ABA/Artigo Veja





NOTA DA COMISSÃO DE ASSUNTOS INDÍGENAS:

A reportagem divulgada pelo último número da revista Veja, provocativamente intitulada "Farra da Antropologia oportunista", acarretou uma ampla e profunda indignação entre os antropólogos, especialmente aqueles que pesquisam e trabalham com temas relacionados aos povos indígenas. Dados quantitativos inteiramente equivocados e fantasiosos (como o de que menos de 10% das terras estariam livres para usos econômicos, pois 90% estariam em mãos de indígenas, quilombolas e unidades ambientais!!!) conjugam-se à sistemática deformação da atuação dos antropólogos em processos administrativos e jurídicos relativos a definição de terras indígenas.
Afirmações como a de que laudos e perícias seriam encomendados pela FUNAI a antropólogos das ONG's e pagos em função do número de indígenas e terras "identificadas" (!) são obviamente falsas e irresponsáveis. As perícias são contratações realizadas pelos juízes visando subsidiar técnica e cientificamente os casos em exame, como quaisquer outras perícias usuais em procedimentos legais. Para isto o juiz seleciona currículos e se apóia na experiência da PGR e em consultas a ABA para a indicação de profissionais habilitados. Quando a FUNAI seleciona antropólogos para trabalhos antropológicos o faz seguindo os procedimentos e cautelas da administração pública. Os profissionais que realizam tais tarefas foram todos formados e treinados nas universidades e programas de pós-graduação existentes no país, como parte integrante do sistema brasileiro de ciência e tecnologia. A imagem que a reportagem tenta criar da política indigenista como uma verdadeira terra de ninguém, ao sabor do arbítrio e das negociatas, é um absurdo completo e tem apenas por finalidade deslegitimar o direito de coletividades anteriormente subalternizadas e marginalizadas.
Não há qualquer esforço em ser analítico, em ouvir os argumentos dos que ali foram violentamente criticados e ridicularizados. A maneira insultuosa com que são referidas diversas lideranças indígenas e quilombolas, bem como truncadas as suas declarações, também surpreende e causa revolta. Sub-títulos como "os novos canibais", "macumbeiros de cocar", "teatrinho na praia", "made in Paraguai", "os carambolas", explicitam o desprezo e o preconceito com que foram tratadas tais pessoas. Enquanto nas criticas aos antropólogos raramente são mencionados nomes (possivelmente para não gerar demandas por direito de resposta), para os indígenas o tratamento ultrajante é na maioria das vezes individualizado e a pessoa agredida abertamente identificada. Algumas vezes até isto vem acompanhado de foto.
A linguagem utilizada é unicamente acusatória, servindo-se extensamente da chacota, da difamação e do desrespeito. As diversas situações abordadas foram tratadas com extrema superficialidade, as descrições de fatos assim como a colocação de adjetivos ocorreram sempre de modo totalmente genérico e descontextualizado, sem qualquer indicação de fontes. Um dos antropólogos citado como supostamente endossando o ponto de vista dos autores da reportagem afirmou taxativamente que não concorda e jamais disse o que a revista lhe atribuiu, considerando a matéria "repugnante". O outro, que foi presidente da FUNAI por 4 anos, critica duramente a matéria e destaca igualmente que a citação dele feita corresponde a "uma frase impronunciada" e de "sentido desvirtuante" de sua própria visão.
A agressão sofrida pelos antropólogos não é de maneira alguma nova nem os personagens envolvidos são desconhecidos, isto apenas considerando os últimos anos. O antropólogo Stephen Baines em 2006 concedeu uma longa entrevista a Veja sobre os índios Waimiri-Atroari, população sobre a qual escrevera anos antes sua tese de doutoramento. A matéria não saiu, mas poucos meses depois, uma reportagem intitulada "Os Falsos Índios", publicada em 29 de março de 2006, defendendo claramente os interesses das grandes mineradoras e empresas hidroelétricas em terras indígenas, inverteu de maneira grosseira as declarações do antropólogo (pg. 87). Apesar dos insistentes pedidos do antropólogo para retificação, sua carta de esclarecimento jamais foi publicada pela revista. O autor da entrevista não publicada e da reportagem era o sr. Leonardo Coutinho, um dos autores da matéria divulgada na última semana pelo mesmo meio de comunicação.
Em 14-03-2007, na edição 1999, entre as pgs. 56 e 58, uma nova invectiva contra os indígenas foi realizada pela Veja, agora visando o povo Guarani e tendo como título "Made in Paraguai - A Funai tenta demarcar área de Santa Catarina para índios paraguaios, enquanto os do Brasil morrem de fome". O autor era José Edward, parceiro de Leonardo Coutinho, na matéria citada no parágrafo anterior. Curiosamente um sub-título foi repetido na matéria da semana passada - "Made In Paraguay". O então presidente da ABA, Luis Roberto Cardoso de Oliveira, solicitou o direito de resposta e encaminhou um texto à revista, que nem sequer lhe respondeu.
Poucos meses depois a revista Veja, em sua edição 2021, voltou à carga com grande sensacionalismo. A matéria de 15-08-2007 era intitulada "Crimes na Floresta – Muitas tribos brasileiras ainda matam crianças e a Funai nada faz para impedir o infanticídio" ( pgs. 104-106). O sub-título diz explicitamente que o infanticídio não teria sido abandonado pelos indígenas em razão do "apoio de antropólogos e a tolerância da Funai." A matéria novamente foi assinada pelo mesmo Leonardo Coutinho. Novamente o protesto da ABA foi ignorado pela revista e pode circular apenas através do site da entidade.
Em suma, jornalismo opinativo não pode significar um exercício impune da mentira nem práticas sistemáticas de detratação sem admissão de direito de resposta. O mérito de uma opinião decorre de informação qualificada, de isenção e equilíbrio. Ao menos no que concerne aos indígenas as matérias elaboradas pela Veja, apenas requentam informações velhas, descontextualizadas e superficiais, assumindo as características de uma campanha, orquestrada sempre pelos mesmos figurantes, que procuram pela reiteração inculcar posturas preconceituosas na opinião pública.
Numa análise minuciosa desta revista, realizada em seu site, o jornalista Luis Nassif fala de uma perigosa proximidade entre lobistas e repórteres nas revistas classificadas como do estilo "neocon". A presença de "reporteres de dossier" é uma outra característica deste tipo de revista. A luz dos comentários deste conceituado jornalista a lista de situações onde a condição de indígenas é sistematicamente questionada não deixa de ser bastante significativa. Ai aparecem os Anacés, que vivem no município de São Gonçalo do Amarante (onde está o porto de Pecem, no Ceará); os Guarani-M'bià, confrontados por uma proposta do mega-investidor Eike Batista de construção de um grande porto em Peruíbe, São Paulo; e os mesmos Guaranis de Morro dos Cavalos (SC), que lutam contra interesses poderosos, que os qualificam como "paraguaios" (tal como os seus parentes Kayowá e Nandevá do Mato Grosso do Sul, em confronto com o agro-negócio pelo reconhecimento de suas terras).
Como o objetivo último é enfraquecer os direitos indígenas (em disputas concretas com interesses privados), os alvos centrais destes ataques tornam-se os antropólogos, os líderes indígenas e os seus aliados (a matéria cita o Conselho Indigenista Missionário/CIMI por várias vezes e sempre de forma igualmente desrespeitosa e inadequada).
É neste sentido que a CAI vem expressar sua posição quanto a necessidade de uma responsabilização legal dos praticantes de tal jornalismo, processando-os por danos morais e difamação. Neste momento a Presidência da ABA está em contato com seus assessores no campo jurídico visando definir a estratégia processual de intervenção a seguir.
Dada a assimetria de recursos existentes, contamos com a mobilização dos antropólogos e de todos que se preocupam com a defesa dos direitos indígenas para, através de sites, listas na Internet, discussões e publicações variadas, vir a contribuir para o esclarecimento da opinião pública, anulando a ação nefasta das matérias mentirosas acima mencionadas. Que não devem ser vistas como episódios isolados, mas como manifestações de um poder abusivo que pretende inviabilizar o cumprimento de direitos constitucionais, abafando as vozes das coletividades subalternizadas e cerceando o livre debate e a reflexão dos cidadãos. No que toca aos indígenas em especial a Veja tem exercitado com inteira impunidade o direito de desinformar a opinião pública, realimentar velhos estigmas e preconceitos, e inculcar argumentos de encomenda que não resistem a qualquer exame ou discussão.

João Pacheco de Oliveira
Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas/CAI

Nota da Diretoria da ABA sobre matéria publicada pela revista Veja

Nota da Diretoria da ABA sobre matéria publicada pela revista Veja (Veja ano 43 nº 18, de 05/05/2010)
Frente á publicação de matéria intitulada "A farra da antropologia oportunista" (Veja ano 43 nº 18, de 05/05/2010), a diretoria da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em nome de seus associados, clama pelo exercício de jornalismo responsável, exigindo respeito à atuação profissional do quadro de antropólogos disponível no Brasil, formados pelos mais rigorosos cânones científicos e regidos por estritas diretrizes éticas, teóricas, epistemológicas e metodológicas, reconhecidas internacionalmente e avaliadas por pares da mais elevada estatura cientifica, bem como por autoridades de áreas afins.
A ABA reserva-se ao direito de exigir dos editores da revista semanal Veja que publique matéria em desagravo pelo desrespeito generalizado aos profissionais e acadêmicos da área.